quarta-feira, 25 de agosto de 2010

Memória(s)


Eu estava sentado na minha cadeirinha velha, como eu, de balanço. O dia estava muito abafado, como de costume nos verões dos últimos anos. As coisas não eram mais as mesmas. Lia um antigo jornal que tinha achado amassado no meio das minhas tralhas, da época em que ainda escrevia pra'quele jornal tão importante que hoje já nem existe mais. Vi meu nome assinando uma matéria simples sobre um político corrupto, tão comum naquela época. Meus olhos se encheram de lágrimas e algumas delas escorreram pelo meu rosto pálido e agora cheio de marcas do tempo.
Então ouvi a voz daquela mulher que há mais de 50 anos atrás eu tinha escolhido pra mim, dizer “ você pode vir aqui, querido ?”.  Fechei o jornal cuidadosa e vagarosamente, levantei com dificuldade e caminhei lentamente até o quarto onde dormíamos juntos a tanto tempo. Estava com uma sensação esquisita, devia estar esquecendo alguma coisa. Entrei no quarto e encontrei aqueles olhos castanhos que tanto me encantavam olhando fixamente para os meus, com um pequeno sorriso no rosto, aquele sorriso que só ela possuía. Um pacotinho embrulhado delicadamente por um papel azul com uma lacinho vermelho estava ao lado dela, na cama. Porque aquele presente estava ali ? Iríamos a alguma festa que eu não sabia ? Ela fez um gesto com a mão pra que eu sentasse ao lado dela. Caminhei devagar e sentei-me ao seu lado. Continuou me olhando por algum tempo, antes de colocar uma das suas mãos desgastadas pelo tempo, mas bem cuidadas, com as unhas sempre pintadas, belas, em meu rosto de aparência cansada e me dar um beijo leve. Aqueles lábios tão bem desenhados que ela possuía, agora não eram os mesmos, mas ainda assim me agradavam e muito. Sorri bobamente antes de perguntá-la “Nós vamos a alguma festa?” e ela me disse que não. “Então porque o presente?”. Franziu a testa ao ouvir minha frase. Eu deveria me lembrar de algo ? Será que era aniversário de um dos nossos filhos ? Não, se fosse nós iríamos até lá... Minha memória não era mais a mesma. Coisas "menos" importantes tinham sumido completamente da minha cabeça, como se nunca tivessem existido.
“Você não sabe que dia é hoje?”. Não era o aniversário de nosso casamento, fora há dois...dois ? Ou três  meses ? Bom, não era o aniversário de casamento. Fiz que não com a cabeça, confuso. Ela se espantou. Como você não lembra”. Deus, o que eu estava esquecendo ? Isso estava me perturbando. Olhei fixamente para o rosto daquela que eu amava a tanto e fixei os olhos novamente nos lábios dela. Pedi-lhe um beijo. Ela disse que não, enquanto não adivinhasse qual era o dia de hoje. Insisti e ela continuou a negar. Sorri, me lembrando de uma carta que tinha recebido dela, quanto ainda tinha 19 anos. “Menino dócil, dos lábios ansiosos, suplica pelos meus?” recitei, baixinho. Um sorriso habitou novamente o rosto cansado daquela mulher e seus olhos tão lindos encheram - se de lágrimas. Me deu um beijo muito carinhoso, como nos velhos tempos. Aquela frase residiu em minha mente desde o momento em que a li, naquela madrugada, antes de ir dormir.
Depois do beijo, então, como se não acreditando no que eu tinha capacidade de lembrar e o de esquecer, ela me entregou o pacote embrulhado e disse, sorrindo lindamente “Feliz Aniversário, meu amor!”.

Um comentário:

  1. Sera que um dia, tu lembraras dos rostos cansados e dos olhos de esperança que tanto acreditam em ti? Seremos dignos de tuas sabias e poeticas palavras quando nosso entendimento estiver como o protagonista desta história? Nostaugico e romantico como é, tenho certeza que sim! Te amo sobrinho.

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